João Paulo Vaz

Os meninos

 

João Paulo Vaz

Nenhum de nós sabe com certeza como e quando os meninos começaram a aparecer. Mas foi durante uma daquelas tréguas que podiam se estender por semanas ou meses.

As tréguas eram cada vez mais longas e sempre bem-vindas. No início, descansávamos, lubrificávamos as armas, remendávamos uniformes. Deitávamos na sombra, e a satisfação de continuar vivo nos engordava. O tédio e a preguiça vinham depois. Foi numa fase assim que me dei conta da presença constante dos meninos.

Nem é preciso dizer que isto aqui não é lugar para crianças. Na verdade não é lugar para ser humano algum, só nós mesmos, que não temos outra escolha e já não somos exatamente humanos.

O normal teria sido expulsá-los. Mas o comandante não se mexeu e ninguém se sentiu na obrigação de tomar a iniciativa. Iniciativas de qualquer tipo eram cada vez mais raras entre nós. A série infindável de pequenas vitórias e derrotas sem consequência havia acabado com a esperança e o medo que nos faziam bravos. Ninguém mais esperava vencer esta guerra que se diluiu no tempo, na inutilidade dos tiros sem alvo visível, na falta de sentido das mortes aleatórias. O fato é que, mais por inércia nossa do que por qualquer outra coisa, os meninos foram ficando.

Dormiam junto à porta da cozinha, comiam os restos da nossa comida, faziam pequenos serviços – apanhavam água no poço, lavavam as panelas, matavam ratos. A matança de ratos foi o que primeiro me fez prestar atenção neles. Passavam horas imóveis, atiradeiras nas mãos, espreitando a caça. Então um deles esticava devagar a borracha, soltava e, de algum canto escuro, um guincho anunciava a precisão da pedrada.

Lembro bem da tarde em que eu me debatia num sonho especialmente mórbido. As imagens eram as de um filme antigo, mudo, em preto e branco. Estávamos num pântano, cercados pela fuzilaria inimiga. Balas e granadas silenciosas nos arrancavam pedaços, mas ninguém morria nem se importava muito, apenas continuávamos a chafurdar na massa escura, onde já não era possível discriminar o sangue da lama. De repente, um silvo intermitente de alarme de bombardeio quebrou o silêncio do sonho. Acordei assustado. A meu lado, aos guinchos, uma ratazana arrastava desesperada a coluna partida e os quartos traseiros paralisados. Antes que eu acabasse de entender o que acontecia, um dos meninos surgiu na minha frente e esmagou a cabeça do bicho com uma pedrada de misericórdia.

O que me surpreendeu naquele dia foi a expressão, no olhar do menino, de satisfação com o próprio poder. Durou talvez uma fração de segundo, e imagino que só a percebi porque, mal acordado, eu estava ainda naquele estado de semiconsciência em que a intuição ainda não está submetida à razão. A surpresa não foi tanto pela expressão em si, mas por reencontrá-la justo no olhar de um deles. Satisfação, desejo de poder eram sentimentos que ninguém ali experimentava havia tempo. E, nos olhares dos meninos, até então, eu só tinha percebido a fragilidade da fome, a humildade com que esperavam os restos das nossas refeições, a subserviência com que lavavam as panelas.

A trégua se prolongou além da nossa capacidade de contabilizar o tempo. Durava tanto que, embora ninguém admitisse nem a si mesmo, já começávamos a dar a guerra por encerrada. Prova disso era o desinteresse pelas armas empoeiradas, amontoadas num canto. De vez em quando, alguém lembrava que era preciso lubrificá-las. E ficava nisso. Até que um dia, ao acordar de manhã, dei com um dos meninos desmontando o fuzil do Gomes. “Ta fazendo o que aí?” – perguntei. “O Gomes mandou”. Estranhei. Ninguém podia mexer em arma de ninguém. Aquilo mostrava a que ponto tinha chegado nosso desleixo. Decidi falar com o Gomes ou com o comandante, mas, como os dois ainda dormiam, fui tomar café e acabei me esquecendo do caso.

Nos dias seguintes, alguns meninos desmontaram e lubrificaram outros fuzis. “O meu pode deixar que eu mesmo faço” – avisei. Mas continuei adiando a tarefa e, mais tarde, quando percebi meu fuzil tão limpo quanto os outros, não me animei a reclamar. Na verdade, meu interesse por ele, àquela altura, era nenhum.

Pouco tempo depois, num final de tarde, eu acompanhava o percurso de uma ratazana, à espera da pedrada que a abateria. Atrás da cozinha, havia um muro baixo sobre o qual se erguia outro mais estreito. A ratazana vinha pelo degrau formado entre o topo de um e a base do outro. Protegida pela sombra, dava alguns passos em direção ao latão de lixo da cozinha, parava, fareja o ar, dava mais alguns passos. Sentado ao lado do latão e encostado no muro, aproveitando ele também a proteção da sombra, o Batista se masturbava. A ratazana vinha pouco acima dele. “Vai cair na cabeça do Batista” – pensei quando ela parou, levantou o focinho mais uma vez e eu esperei ouvir a retração do elástico de uma atiradeira.

Mas o que se escutou foi um tiro de fuzil.

O impacto da bala jogou a ratazana contra o muro. O corpo despedaçado caiu na cabeça do Batista, que, no susto, saltou de onde estava, e, saiu tropeçando na calça arriada.

Aquilo tinha ultrapassado qualquer limite e a única atitude razoável era expulsar todos os meninos imediatamente. Mas o batalhão inteiro explodiu de rir com a cena do Batista, aos tropeções, cara e peito salpicados do sangue da ratazana, sem saber se segurava o pau ou a calça. Nossas gargalhadas desarmaram sua fúria e ele não fez mais que arrancar o fuzil das mãos do menino e berrar meia dúzia de palavrões.

É curioso o modo como as mudanças acontecem. Embora, entre o início daquela última trégua e agora, o batalhão e a própria guerra tenham mudado radicalmente, não é tão simples entender como e quando o processo se deu. Mas ter permitido o acesso dos meninos às armas foi, sem dúvida, um divisor de águas.

Desinteressados de um poder que não nos levava a lugar algum, deixamos que os meninos o exercessem. O poder das armas.

No que passaram a andar de fuzil a tiracolo, eles foram mudando de atitude. Não esperavam mais os restos das nossas refeições. Comiam junto. Não lavavam mais as panelas, não apanhavam água no poço. Promoviam caçadas coletivas em que alguns meninos revolviam o lixão enquanto os outros alvejavam as ratazanas em fuga, e nós éramos obrigados a buscar proteção contra a fuzilaria.

De vez em quando um de nós protestava, mas sempre esperando que os outros tomassem alguma atitude, e a reação não passava disso. O comandante não dava ordens havia tanto tempo que ninguém mais tomava conhecimento dele. Quando, durante uma das caçadas, uma bala ricocheteou no muro e atravessou sua cabeça, encaramos o fato como um acidente, nada mais. Enterramos o corpo sem qualquer cerimônia especial, exceto por uma salva de tiros que os meninos insistiram em disparar.

Hoje entendo que, num ambiente como o nosso, as armas – sejam elas atiradeiras ou fuzis – são a principal fonte de virilidade e energia espiritual. Sem elas, chafurdamos no pântano da indolência. Não acho que isso explique tudo. Mas o fato é que, dias atrás, quando a trégua afinal terminou, continuamos lavando panelas.

Da guerra se encarregam agora os meninos.


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